sábado, 31 de março de 2012

COMO SE AJUDA UM AMIGO - 2


Como se ajuda um amigo - 2

#Alzirfraga


Os pais do Wilson eram de origem muito humilde e, trabalhando em parques de diversão, acabaram comprando um aparelho, depois outro e formaram dois parques, dos quais o pai cuidava de um e o Wilson cuidava do outro. Mas a criação foi deficiente em diversos aspectos. Para terem uma ideia, uma vez o Wilson quando era garoto fez uma travessura e fugiu enquanto a mãe corria atrás dele. Para escapar, ele subiu em uma árvore e a mãe, que estava com uma faca de cozinha na mão, deu-lhe uma espetada na bunda. Como novos emergentes, o pai comprou um carro Cadillac automático. Quando fui a um restaurante com eles, o pai chamou o garçom, que demorou um pouco para atender. Quando chegou para anotar o pedido, o pai do Wilson perguntou ao garçom: "Você é surdo ou é burro mesmo?"
Por isso, o Wilson pegou todos os vícios de linguagem com a família e no último post em que eu me referi ao meu amigo Wilson comentando: *Estudei com ele, mas era difícil explicar, porque ele não entendia os termos técnicos jurídicos. Usava e compreendia apenas os termos do linguajar comum.* Isso era verdade. Já contei como fiz com que ele entendesse a diferença entre os crimes de calúnia, difamação e injúria (ladrão, viado e filho da puta, lembram?). Estudando Direito Civil também era uma dificuldade. Quando eu tentava explicar para ele que um dos contratantes tinha que *"prestar caução pro rato"* ele caia na gargalhada e dizia que o sujeito teria que emprestar um calçãozinho pequenino para o rato ir à praia. Não tinha jeito de entender que "prestar caução pro rato" significava dar uma garantia de que o contratante vai cumprir o que prometeu no contrato.
O nosso professor de Direito Civil foi Ebert Chamoum, que foi encarregado de redifir o novo Código Civil na parte do Direito das Obrigações, mas em matéria de *Responsabilidade Civil* tivemos aulas com o Ministro José de Aguiar Dias, simplesmente a maior autoridade em responsabilidade civil em toda a América Latina. Ele era extremamente formal. Comparecia sempre usando um terno preto com colete, por maior que estivesse o calor e falava um linguajar tão técnico que muitas vezes era difícil entender o que ele dizia. Todos mantinham um silêncio respeitoso durante suas aulas e nós o apelidamos de *Sessão Solene.* Uma vez, falando sobre dano moral ele disse que o Código explicitava o caso de *Ofensas graves*. E ele explicou: "O que são ofensas graves? Ofensas graves são baldões, ofensas graves são doestos, ofensas graves são assacadilhas". Ora, se ele não tivesse explicado tão claramente, nós jamais poderíamos saber o que são ofensas graves!
O Wilson foi para a prova oral com o Sessão Solene precisando de tirar seis para não ser novamente reprovado e ser jubilado da faculdade. Eu fiquei muito receoso, porque sabia que o Wilson não conseguiria se comunicar com o Sessão Solene. Eles não falavam a mesma língua. O exame começou e ele até que estava respondendo direitinho como eu tinha ensinado. Foi então que a coisa encrencou. Chegou uma hora em que o Wilson tinha que explicar a indenização por dano moral quando um homem seduz e tira a virgindade de uma moça. O Wilson sabia a resposta e começou a relatar o caso usando expressões populares (daquele tempo). Se o rapaz *"faz mal a uma moça..."* Foi aí que o Sessão Solene interrompeu. "Faz mal? O que você quer dizer com isso? O que faz mal é comida estragada. Existe um termo técnico que descreve exatamente essa ação de tirar a virgindade. Use o termo correto."
O Wilson já estava nervoso e ficou branco. Continuou a tentar dizer que "o rapaz faz mal a uma moça..." mas era novamente interrompido e o Sessão Solene fazia questão que ele utilizasse a expressão exata que descrevia essa ação. "Mas, professor, o senhor está entendendo o que eu quero dizer..." não adiantou. O Wilson tinha que usar a expressão específica que descrevia o que o rapaz tinha feito com a moça. Nós sabíamos que o Sesão Solene estava querendo que o Wilson utilizasse a expressão *"deflorar"* , mas o Wilson não conhecia esse termo técnico e acabou tendo que usar a expressão popular que ele conhecia equivalente a "fazer mal a uma moça". Ele tomou uma respiração e narrou: "Quando o rapaz *descabaça* uma moça..."
Houve uma silêncio geral na turma, todos prenderam a respiração por uns dez ou quinze segundos até que alguém não aguentou e deu a maior gargalhada. Isso desencadeou uma gargalhada geral da turma e até eu não sabia se ria ou se chorava. O Sessão Solene ficou imóvel e calado até que a turma se acalmou e disse para o Wilson: "O senhor pode se retirar".
O Wilson saiu da banca e saiu da sala. Eu fui atrás dele tentando acalmá-lo, mas ninguém tinha dúvida de que o Sessão Solene lhe daria zero. O Wilson se descontrolou e começou a chorar porque o pai depositara suas esperanças em ver o filho se formando como advogado, sendo um Doutor de anel no dedo e agora o sonho tinha se desvanecido. Eu também fiquei abalado.
Eu disse ao Wilson que iria tentar um golpe desesperado, mas não tinha muitas esperanças de conseguir qualquer benefício. É que o Sessão Solene tinha uma enorme consideração por mim. Não só eu tinha cultura geral como cultura jurídica e conversava frequentemente com ele sobre assuntos técnicos. Tudo começou quando ele estava dando uma aula e, se não me engano, explicando a *Teoria do Risco* quando fez uma afirmação que eu não consegui entender. Não fazia sentido para mim. Eu pedi a palavra e expressei minha dúvida. Ele explicou novamente quase que nos mesmos termos usados anteriormente e eu insisti que aquilo não me parecia fazer sentido, face ao que ele já nos tinha ensinado anteriormente. O professor me pediu que aguardasse até à próxima aula, quando ele traria a explicação depois de examinar o assunto com calma. Ele era o autor de um livro em dois volumes denominado *Responsabilidade Civil* , já com várias edições em português e também em espanhol. Era a bíblia da responsabilidade civil na América Latina. Quando chegou a próxima aula, ele me chamou e declarou que realmente eu estava com a razão. A tese defendida por ele não estava correta e já na próxima edição de seu livro ele iria modificá-lo dando-lhe o sentido que eu tinha defendido!
Além de ser o primeiro aluno ao qual ele deu a nota dez em um exame, frequentemente após a aula ele me chamava e trocava ideias comigo como se eu não fosse um aluno e sim um professor com a capacidade dele.
Eu esperei terminarem as arguições orais e fui falar com ele. Ele me recebeu muito bem, como sempre, mas estava visivelmente perturbado por aquele fato inconcebível. Expliquei para ele minha amizade com o Wilson e sua origem humilde, de onde vinha sua utilização de termos populares e até chulos. Falei do drama que seria ele ser jubilado e desapontar o pai. Insisti mesmo.
Depois de bastante tempo e muito a contra gosto, o Sessão Solene acabou aceitando relevar o fato e prometeu que daria ao Wilson a nota seis que ele precisava. Cumpriu o que me prometeu.
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Sei que não é muito fácil acreditar que alguém de notável saber jurídico tenha atendido ao pedido de um mero aluno, mas eu posso provar a admiração e o respeito que ele tinha por mim. Vou juntar a este post o retrato do Ministro José de Aguiar Dias, o Sessão Solene, seu currículo e uma declaração de próprio punho que ele me deu enaltecendo minhas qualidades e manifestando a certeza de que em pouco tempo eu iria me projetar nas letras e no mundo jurídico. Como logo em seguida eu passei no concurso para juiz federal, não me enfronhei mais no direito civil, mas guardo com muito carinho e orgulho essa declaração.




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