domingo, 26 de agosto de 2012

MEU PAI


  EDIÇÃO COMEMORATIVA DOS 101 ANOS DO NASCIMENTO DE GARIBALDI CELESTINO FRAGA





De 3 de setembro de 2011 a 2 de setembro de 2012, nosso pai teria 100 anos. Na semana final desse período em que se comemora  o seu centenário de nascimento, Arizla deu a ideia de uma edição especial em homenagem a ele.

Eu pretendia colocar aqui uma foto só do papai, mas todas as fotos em que ele apresenta muita felicidade são aquelas em que ele está junto com a mamãe. Acho que nem mesmo a morte teve poder para separá-los.


GARIBALDI CELESTINO FRAGA
MEU PAI

                                                                                                   ARIZLA FRAGA DE SOUZA

           Alguns nomes e ocasiões me vêm à lembrança quando penso em meu pai.
    Quando morávamos na Rua Vitor Meireles (no Riachuelo), ele organizava uma apresentação na sala de jantar.  Uma vez, o Ado se apresentou coberto com um lençol como se fosse um fantasma.  Lembro que papai, para dar mais emoção à cena, anunciou: “- Olha o fantasma!” e o Ado saiu correndo assustado com ele mesmo.          Quando eu era pequena, ele parou de fumar e, para ajudar nisso, tinha sempre no bolso do paletó uma caixa de chicletes.  Eu sempre mexia nos bolsos à procura dos chicletes.          Era chamado de Tchelé (de Celestino) pelos irmãos.  Além dele, tinha o Ticandó (Tio Antônio), o Tio João, a Tia Mia e a Tia Elvira (todos filhos da vovó Tereza, a quem também conheci).          Ainda na Rua Vitor Meireles (tarde da noite), voltávamos da Fraternidade andando e conversando no meio da rua, junto com Seu Emiliano e a Dona Celina, além de Seu Preard e Dona Lurdes que eram nossos vizinhos.Participamos, na década de 40, de um acampamento em Araras, organizado pela Associação Cristã de Moços (ACM).  Fomos papai, eu, Zico e Santa (filha de tio Oscar e tia Dulce).  Era Carnaval e nos divertimos muito.Dormíamos em barracas; homens em umas e mulheres em outras. Quando atrasávamos na hora das refeições, tínhamos que correr em volta das mesas enquanto todos batiam com os talheres na mesa. Participamos de várias competições; lembro que o Zico ganhou uma competição de tiro ao alvo.  Foi muito bom!Papai nos levava, nessa época, para ver o Carnaval na Avenida Rio Branco. Íamos no carro do Chico e levávamos confete e lança-perfume.  Chegamos a ver o Cacique de Ramos passar (Na época, era um bloco grande, mas pequeno se comparado com o bloco de hoje)          Mudamos para perto da Fraternidade primeiramente para a Estrada Velha da Tijuca e, depois, para a Rua Muçu, onde construiu a casa onde fomos morar ( projeto do arquiteto Benjamim de Carvalho).          Papai parecia o chefe de uma tribo quando saía com todos os filhos.  Para atravessar a rua, ficávamos, lado a lado, na calçada.  Ele no meio de nós, com os braços abertos, atento, ordenava à tribo: “VAMOS!!!”  Bem teatral...          Na Fraternidade, papai se destacava pela inteligência e pelo poder de prender a atenção de todos ao falar sobre a doutrina, lá na frente.  Era verdadeiramente brilhante!!!Papai costumava ir frequentemente a Brasília, de avião. Acho que era para entrar com recurso, em causas já julgadas no Rio. Demorava de 2 a 4 dias para voltar. Uma vez, levou o Ricardo com ele (acho que foi para Belo Horizonte).          Lembro-me de seus ternos brancos de linho (impecáveis) que usava para ir à Fraternidade.  Saía tão bonito e cheiroso que a vovó ficava desconfiada.  “Isso tudo é só para rezar?”, sussurrava.          Era vegetariano e sentava-se à mesa para almoçar com alegria.  “Eu adoro bertalha”, dizia como se fosse uma iguaria dos deuses.          Sempre esquecia o guarda-chuva no ônibus para o trabalho.  Ficava fácil comprar presente para ele: era sempre um guarda-chuva novo.          Seus espirros eram escandalosos (era alérgico...) ecoavam pela casa toda!

          Aprendeu a dirigir já adulto.  Não era bom na direção.  Mamãe não tinha confiança nele como motorista e contava que, dirigindo com o vidro do motorista fechado, tentava virar à esquerda colocando a mão pra fora da janela.Em 1951, participamos (papai, eu e um grupo da Fraternidade) de uma “Cruzada” para divulgar a Doutrina Rosacruz.  Fomos de navio (levando os carros) até Porto Alegre e voltamos de carro fazendo palestras em várias cidades.          Todos os filhos torcem pelo Fluminense, já que papai era tricolor (inspirado nas cores da bandeira italiana). Em casa, não mandava em quase nada.  Tudo era mamãe que resolvia: escola, criança doente, organização da casa, etc.          Aos domingos pela manhã, tirava os livros da estante e os colocava na varanda para arejar.  Enquanto fazíamos isso, escutávamos músicas italianas cantadas, entre outros, por Benjamino Gigli, Enrico Caruso e Mario Lanza.  As que me deixaram lembranças foram: O sole mio, Una furtiva lagrima, Torna a surriento, La donna è mobile, Tosca, Funiculì funicolà, Vesti la giubba, Ti voglio tanto bene, Volare e Ridi pagliaccio.          Quando entrava mais dinheiro, era um mão aberta; mas quando a situação apertava, perguntava à mamãe: “Mas eu não trouxe dinheiro outro dia mesmo?”.          Papai me ajudou a comprar um apartamento no prédio em que moro.  Papai pagava ½ prestação, eu (já trabalhando) pagava ¼ e Adolpho (trabalhando e fazendo faculdade) pagava ¼.  Depois compramos outro no mesmo prédio.  Um apartamento ficou para nós e outro para o papai. Depois trocamos o nosso pela cobertura.  Ele nos ajudou bastante agindo assim. A firma que estava construindo o prédio faliu . Papai formou uma comissão de moradores para terminar a obra; era o chefe dessa comissão e chamou o Dr. Carvalho para cuidar da parte técnica. Graças a ele, 68 famílias conseguiram terminar seus apartamentos.          Quando fomos para São Paulo, em lua-de-mel, e papai nos levou até o embarque no trem noturno, recomendou cuidado comigo ao Adolpho.  Estava preocupado, pois era a primeira filha que casava.          Seus interesses eram o bem estar da família, o trabalho e os assuntos esotéricos.  Procurava, depois que saiu da Fraternidade, conhecimentos em outras filosofias.  Chegou a frequentar a Igreja Messiânica e fazia yoga com o Professor Hermógenes. Não sei se desenvolveu algum poder de cura, mas mamãe dizia que ao tocar a testa dela, com as suas mãos, a dor de cabeça sumia.  Brincando, talvez, dizia que ele aplicava Johrei.  Estava no primeiro ano ginasial e encontrei, no final da aula, uma caneta esquecida sobre a mesa da professora. Peguei e levei para casa. Papai viu que tinha um nome gravado na caneta. Só lembro do sobrenome Amado. Era a mulher (como advogado, papai dizia que era essa a palavra certa  em vez de esposa) de Gilson Amado, diretor ou professor no Colégio Pedro ll  (família muito respeitada no meio intelectual) Através do catálogo telefônico, papai entrou em contacto com a professora e a caneta foi devolvida. Não brigou comigo, apenas fez o certo. Essa foi a melhor lição na minha vida: a formação do caráter.          Lembro-me de algumas vezes em que reclamou:·       A bronca que levei quando, toda exibida, desci a escada da sala usando um maiô igual ao da Marta Rocha (Miss Brasil), e o maiô tinha até sainha na frente;
·       A indignação ao chegar a casa e ver a Rosa namorando o Marcus na varanda, “... e era ela que estava agarrando!”;
·       Quando o Zico trabalhava no escritório com ele e se atrasava em chegar, ligava pra casa e perguntava à mamãe: “Cadê o seu filho?” Desculpa, nessas ocasiões o Zico era o “filho da mãe”.  Não se preocupe, nas outras era motivo de muito orgulho, era o “meu filho”.
          Ganhou dois presentes em datas muito especiais: a primeira neta (Mônica) que nasceu na véspera do seu aniversário e o primeiro neto (Adolpho) nascido no dia do aniversário de casamento (24 de fevereiro).          Por algumas pessoas tinha um carinho especial:
  • Tio Oscar.  Era como um irmão para ele.  Tio Oscar era lacerdista e papai era getulista (costumava ir à Bauru defender o Sindicato dos Ferroviários).  As divergências (pacíficas) eram frequentes.  Com Tio Oscar e Tia Dulce, nossos pais foram, de navio, até Manaus.  Adoraram!
  • Seu Diamantino e Seu Diniz: eram irmãos e frequentavam a Fraternidade. Costumavam almoçar, muitas vezes, lá em casa.
  • Dr Pedro: era seu sócio e vizinho na Rua Muçu.
  • O primo Chico: dono de uma sapataria onde nos levava, ainda pequenos, para escolher sapatos (acho que em troca de serviços de advocacia).
  • Augusto: amigo feito na Associação Cristã de moços (onde andou fazendo ginástica).
          Algum tempo antes de morrer, papai perdia sangue pelo nariz e, embora hoje seja aviso de pressão alta, não se dava nenhuma importância a isso.          Também Dr Waldir, que na época era seu sócio, falava que papai vivia “dando chute na canela dos outros”.  Andava intolerante, e isso não era normal.          No dia em que morreu (meu aniversário) fomos todos almoçar na casa.  Depois do almoço, os genros (todos vascaínos) foram ao Maracanã assistir Flamengo X Vasco.          Mamãe me ligou à noitinha, e pediu que chamasse uma ambulância.  Fiz isso, peguei o carro e fui para lá.  Encontrei papai caído no chão do escritório, desacordado e se debatendo.  Mamãe e Dr Pedro estavam ao seu lado.  Quando parou de se debater, Dr Pedro disse para nós: “- Agora está tudo bem” e eu sabia que não estava.Morreu em 13 de junho de 1976, aos 64 anos, em consequência de um AVC, pois colocou a mão na testa sinalizando dor forte.          No seu enterro havia muitas pessoas.  Lembro que até Miro Teixeira (que já era vereador ou deputado) estava lá.  Era amigo do Tio Antônio (que também era MDB).Ricardo estava inconsolável (chorando muito).  Cheguei perto dele e falei que papai preferiria que nós nos mantivéssemos calmos.  E assim ele ficou.          Lembro-me da tristeza de ver mamãe sentada, sozinha, na varanda.  Lá ficavam os dois sentados sempre conversando.  E, ao escrever isso, meus olhos estão cheios de lágrimas (pela terceira vez).          Era um amor lindo que começou quando ele, fazendo Faculdade de Direito, ajudava o pai sapateiro.  Só se formou depois de casado.          Após 40 anos de casados nunca os vi brigando ou discutindo, nem ao menos ouvi uma palavra mais ríspida entre eles. Quando saía para o trabalho, mamãe o acompanhava com os olhos, da varanda, até ele dobrar a esquina da Rua Muçu.  Então davam um adeusinho.  Como se fossem dois namorados...          Não se chamavam pelos nomes, ele era “Bem” e ela era “Minha”.São lembranças fortes.  Lembro-me de muitas coisas, pois, como tive o privilégio de ser a primeira entre os seis irmãos a nascer (o que também tem seus inconvenientes como rugas e vista cansada, talvez antes dos outros irmãos), tive mais tempo de conviver com ele.








GARIBALDI CELESTINO FRAGA
MEU PAI

ALZIR CARVALHAES FRAGA


A Arizla já disse tudo. Ela foi a que mais conviveu com nossos pais e acredito que também seja a de melhor memória. Eu gostaria muito de dizer que fui um bom filho, que só dei alegria e motivos para o orgulho de meus pais, mas, infelizmente, não estaria falando a verdade. Fui um garoto travesso, vivia fazendo coisas erradas e era muito levado. Apesar disso, meus pais sempre me trataram com extremo amor, carinho e compreensão. Não chegava a ser tão ruim quanto o Pedrinho, filho do vizinho, o qual fazia maldade com animais e chegava a matar gatos usando meios cruéis. Era apenas criança e fazia coisas erradas próprias de crianças e depois que cresci acho que dei motivos de orgulho a minha mãe e, principalmente, a meu pai.
A lembrança mais antiga que tenho de papai é quando todos nós tomávamos um carro e íamos à sapataria do Chico (Francesco Pugliese), primo do papai. Papai era advogado dele e, ao invés de cobrar honorários, ocasionalmente renovava o estoque de sapatos da família inteira. Era uma farra. Ao contrário da família do Adolpho, na qual todos queriam ir junto à janela, nós queríamos todos ir no banco da frente. Penso que Seu Adolpho deveria comprar um carro bem estreito e comprido, com bancos de apenas dois lugares, enquanto o papai deveria optar por um carro bem largo, de um banco só para que todos pudessem ir na frente.
Lembro-me também de nossas idas à Fraternidade, todo mundo vestido impecavelmente de branco e fazendo pose para as fotos segurando o coração. Em uma ocasião, a Fraternidade comprou uma mesa de ping-pong e papai participava alegremente das partidas, enquanto eu acho que era muito pequeno para isso. Por esta ocasião, papai tinha decidido me dar pela primeira vez uma mesada, ou melhor, uma semanada. Ele me prometeu dar uma moeda de dois cruzeiros todos os domingos. Para ele isso podia não ser nada, mas para mim era muito importante e eu fui cair na besteira de pedir a minha moeda justamente quando papai estava participando de uma das partidas. Para que? Ele ficou nervoso e soltou logo um “Não é possível! Você vem me pedir o dinheiro justo agora que eu estou jogando? Minha, tome conta do seu filho para ele não ficar nos perturbando”. Esta é a primeira bronca de que eu me lembro.
Papai tinha pendurado em um prego na sala um quadro no qual constavam os retratos de todos os que se formaram com ele na Faculdade de Direito. Uma vez eu quis ver essas fotos de perto, mas era pequeno e, por isso, resolvi escalar a porta que ficava perto do retrato. Não fiquei sabendo quem foi, mas alguém entrou enquanto eu estava em cima da porta e eu despenquei no chão, quebrando o braço. Levaram-me ao Dr Eiras (não o psiquiatra, mas o clínico geral que frequentava a Fraternidade). Ele colocou o osso no lugar, mas não tinha gesso e encanou com pedaços de papelão. Fui levado depois a um ortopedista, mas ele disse que o imporoviso estava tão bem feito que ele preferiu não mexer.
Outra travessura de que me lembro foi quando ainda morávamos na Rua Vitor Meireles. Tínhamos uma vizinha que, aliás possuia um cachorrinho chamado Guará (mesmo nome de um refrigerante de laranja da época) e nós costumávamos provocar a vizinha cantando a música de propaganda do refrigerante com a letra modificada:
“Guará, Guará, Guará...
Bicho mais feio não há.”
Um dia, ela tinha juntado com o ancinho as folhas de seu quintal e tacou fogo no monte. Eu, como curioso e bom alpinista, subi no muro divisório para ver a fogueira. Chegei perto e, de repente, despenquei de novo lá de cima e fui cair exatamente dentro da fogueira! Coitada da vizinha. Levou um susto enorme, me tirou das chamas e levou para deitar em uma cama, além de passar arnica no meu peito e minhas costas. Ela era boazinha.
Na Rua Vitor Meireles, papai costumava colocar cadeiras na calçada quando caía a noite, principalmente nos dias mais quentes e ficavam sentados conversando e vendo a gente brincar. A Arizla, mais moleca, jogava bola com os meninos e brincava de “bandeira”, com os times tendo por objetivo pegar a “bandeira” do time adversário e trazê-la para o nosso território. Quando alguém invadia o território alheio, tinha que fugir dos inimigos, porque se um adversário encostasse em você, você ficaria “colado” no lugar e só poderia se libertar se algum colega do seu time chegasse até onde você estava de encostasse em você.
Lembro ainda quando terminei o curso primário e frequentei um ano o curso de admissão no Colégio Pardal Pinho, onde a diretora era a proprietária do curso e nós a chamávamos de “Dona Pardaloca”. Eu até que não era dos piores alunos, mas estava longe de ser um dos melhores. Mamãe não conseguia entender porque eu sempre escrevia a palavra “guerra” omitindo a letra “u”. Era Gerra Cisplatina, Gerra do Paraguai, etc. Talvez essa minha falha tenha influído quando me inscrevi na prova de admissão em dois colégios: O Colégio Militar e o Colégio Pedro II. Primeiro foi a prova do Colégio Militar. Fiz a prova e o papai foi saber o resultado, recebendo a notícia de que eu tinha feito boas provas nas demais matérias, mas tinha sido reprovado em História. Papai, sempre muito simpático, amistoso e conversador, explicou que temia mesmo que isso acontecesse, porque eu não gostava do professor de História do curso Pardal Pinho.
Como não tinha passado, voltei ao curso para continuar estudando para a prova de admissão ao Colégio Pedro II. Quando chegou o dia da aula de história, o professor me chamou e disse que ele era major e professor de história no Colégio Militar. Disse que tinha conversado com o meu pai e que meu pai tinha dito que eu não gostava dele. Fiquei calado, completamente paralizado e sem saber o que dizer. Eu só queria abrir um buraco no chão para desaparecer dali. Felizmente fui aprovado no admissão do Pedro II.
A entrada no colégio era às sete horas da manhã e nós morávamos no Alto da Boa Vista. Ainda estava escuro quando a mamãe ia até à cama, tirava meus pés de sob o cobertor, colocava as meias e só então me acordava. Eu me vestia, descia para tomar café e, quando ouvia o barulho de que o bonde já estava descendo, descia as escadas da casa correndo desabaladamente. Quando acontecia de chegar ao portão e ver que este estava fechado à chave, eu subia uns lances de escada, passava em cima da garagem e pulava a grade para cair lá em baixo na rua. Ainda tinha que correr até ao armazem que havia no início da Rua Muçu, porque a parada do bonde era lá. Descia até à Usina e pegava o bonde Tijuca, que me levava até ao centro da cidade onde era o colégio. Quando essa correria me fazia esquecer a gravata do uniforme, eu costumava fechar o agasalho até ao pescoço para passar no portão do colégio sem ser barrado.
Quando entrei para o Pedro II, tinha onze ou doze anos e meus pais me matricularam na Aliança Francesa, mas eu detestava Francês. Mais tarde cheguei a estudar grego por três anos para fugir do Francês. Eu tinha tal aversão ao Francês que comecei a “matar as aulas” no curso enquanto ficava zanzando pela rua. Um dia telefonaram lá da Aliança Francesa e perguntaram à mamãe o motivo de minha ausência prolongada nas aulas. Eu devia ter levado uma surra, mas ficou só na lição de moral e eu saí do curso.
Criei outros problemas e preocupações para papai e mamãe. Uma vez eu fui ao cinema com o Walter, irmão do Adolpho. Era um filme de faroeste e, quando o mocinho beijou a mocinha, o Walter tirou do bolso uma gaita e tocou no cinema escuro. Todo mundo riu e eu batí palmas e com os pés no chão. Vi que tinha quebrado alguma coisa, fui tatear, descobri que era algo líquido e as minhas mãos estavam brilhando no escuro. Mostrei ao Walter e saímos da sala de projeção, onde me colocaram com as mãos no bebedor de água para lavá-las. Mas o caso é que. Enquanto eu ia andando no corredor da sala escura, iam ficando pelo caminho pegadas luminosas. O lanterninha achou que era fogo e tentou apagar com o casaco. Perdeu um casaco nesse dia. Não sei quem tinha deixado a cápsula de ácido fosfórico no chão, mas os espectadores ficaram furiosos, achando que eu tinha iniciado um incêndio. Todo mundo gritava e até o Antonio, outro irmão do Adolpho, estava na sessão separado de nós e gritava junto com a multidão: “Lincha, lincha...”, mas, quando ele viu que era eu, corrigiu logo “Não lincha não que é o Zico!”. Fui atendido no Pronto Socorro e tive as mãos enfaixadas com gaze. Quando cheguei em casa, mamãe estava na varanda e eu brinquei com ela “Mamãe, comprei luvas de box”. Ela calmamente fez um sinal mandando subir.
Em outra ocasião, saindo do colégio eu atravessei a Av. Getúlio Vargas, mas não vi um bonde que se aproximava e fui jogado no chão, paralelo ao trilho. A maior sorte. Se tivesse caído enviezado, a roda teria me cortado em dois e se estivesse com os braços ou as pernas abertas, teria um ou ambos os membros deste lado amputados. Não sofri nada até que, no final do estribo, tinha alguma peça de metal que me fez um corte na nádega.
De novo no Pronto Socorro, onde recebi os pontos no corte. Uma semana depois, foram retirados os pontos e o corte reabriu. Papai teve que me levar para um hospital particular onde recebi anestesia geral e eles limparam o ferimento para costurar de novo. Correu tudo bem, mas, quando eu acordei, não podia levantar a cabeça porque me sentia terrivelmente mal e queria ficar na cama. Mas o papai me explicou e insistiu que nós tínhamos que sair dali agora, porque senão ele teria que pagar mais uma diária do hospital e ele não tinha dinheiro para isso. Papai me pegou no colo (eu tinha doze anos) e me levou até um carro e depois subiu as escadas do pédio até ao terceiro andar comigo no colo.
Todos nós respeitávamos muito nossos pais. Podíamos chorar, mas nunca falar com eles em tom desrespeitoso. Só nos referíamos a eles como “Senhor” e “Senhora”, não é como agora em que pai e mãe são “você” ou até “Pai, tu vai pra casa?”. Se algum dia eu vier a reencontrá-los, continuarei a tratá-los por “Senhor” e “Senhora”.
Quando já estava na faculdade, nós tivemos um contato muitíssimo maior e aí é que eu pude realmente conhecê-lo muito melhor. Ele era a pessoa mais simpática e bem relacionada que eu já vi. Quando nós saíamos do escritório para ir ao forum, em cada esquina ele encontrava um conhecido e parava para conversar. Conhecia todo mundo! Sempre, nas sexta-feiras, ele ia almoçar com os irmãos Tranjan em um restaurante árabe na Rua Senhor dos Passos. Algumas vezes eu fui junto. Eu reclamava com ele porque cobrava barato demais, mas eles eram mais que apenas clientes. Eram amigos. Eles eram proprietários de um andar inteiro de um edifício da Av. Presidente Vargas. Esse andar estava alugado para uma repartição pública federal e a burocracia fazia com que sempre o aluguel custasse a sair até que nós entrávamos com a Ação de Despejo por falta de pagamento. Eles pediam para purgar a mora (pagar o que era devido) mais as custas do processo e 10% de honorários para o advogado dos Tranjans (nós). Um dia o papai chegou orgulhoso me contando que tinha resolvido aquela situação e que agora não iria mais ocorrer qualquer atraso no pagamento do aluguel. Eu fiquei muito P da vida. “Papai, nós recebíamos todos os meses 10% (dez por cento) de aluguel de um andar inteiro e agora, se não houver atraso, nós não ganharemos nada!”. Infelizmente, foi isso mesmo que aconteceu.
Houve uma vez em que o meu primo Sérgio (filho da Tia Mia) tinha sido condenado pelo juiz em primeira instância em um processo criminal e estava preso. Papai fazia a defesa, mas não conhecia direito penal. Quando chegou o dia do julgamento de nossa apelação no Tribunal de Justiça, embora eu ainda não estivesse registrado na OAB, eu podia assinar petições e participar de sessões desde que juntamente com um advogado. Fui eu quem fez a defesa oral perante os desembargadores. Falei sobre hermenêutica, técnica de interpretação da lei, as provas e também apelei para o lado sentimental. Revelei aos desembargadores que o apelante era meu primo e que eles tinham nas mãos a oportunidade de salvar a recuperação de um jovem (Sérgio) e de manter o amor ao direito e a fé na justiça de outro jovem (eu).
Quando eu terminei, papai estava conversando com um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (Evandro Lins e Silva) que tinha sido cassado pelos militares. Ele tinha escutado a minha defesa e tinha elogiado muito a minha atuação para o papai, vaticinando que eu viria a ser um advogado de sucesso. Papai estava “explodindo de orgulho”. Quase chorava. Depois veio o resultado do julgamento. Perdemos, droga!
Trabalhando no escritório com papai eu percebi logo que não levava jeito para ser advogado. Quando aparecia alguém trazendo um caso, normalmente essa pessoa já estava mais informada sobre seus direitos do que nós, que não sabíamos nem do que se tratava. Eu não sabia demonstrar segurança, enrolar e depois ir procurar nos livros sobre o assunto. Não tinha a simpatia dele, não tinha como criar um grande círculo de amigos e clientes e, principalmente, não tinha paciência para aturar juízes, promotores e clientes. Uma vez, defendendo um caso de família em que o juiz tinha estabelecido uma pensão provisória em valor maior do que o nosso cliente ganhava, eu lhe disse para esperar chegar o dia da audiência e que trouxesse todos os comprovantes para que o valor da pensão fosse diminuído. Chegou o dia da audiência, eu entreguei ao juiz os comprovantes de renda comprovando isso, mas o juiz disse mais ou menos: “Que nada! Os maridos sempre arrumam um jeito de conseguir esses documentos fajutos para fingir que ganham menos. Você vai ter que efetuar o pagamento agora de todos os atrasados ou eu vou te dar voz de prisão e você vai direto para a cadeia”.
O cliente ficou, claro, muito nervoso e eu também. Argumentava mas o juiz não respondia com argumentos, mas só com suposições, deboche e ameaças. Até que chegou uma hora em que eu não aguentei mais, levantei-me da cadeira, disse que estava passando mal e sem esperar resposta retirei-me da sala e fui chorar no corredor, de tão revoltado com a injustiça. Depois de algum tempo, voltei ao local e um advogado me disse que ele mesmo tinha assumido a causa e tinha negociado um acordo, mas que eu deveria voltar para assinar o acordo. O Juiz estava furioso comigo, disse que aquilo era desacato e que ele só não tinha me prendido porque o outro advogado tinha se oferecido para continuar a audiência. Na verdade, eu acho que ele também ficou com medo das consequências, porque a Ordem dos Advogados iria tomar a minha defesa quando eu contasse o motivo de minha atitude.
Nunca tive paciência para ficar conversando com clientes. Eu gostava era de escrever petições e arrazoados analisando os processos. Briguei com vários clientes e, quando o Tranjan resolveu vender os apartamentos que tinha alugados na Taquara, um dos compradores era o casal de pais da Nicinha, minha atual mulher. Seu Sebastião e Dona Eunice faziam quase uma viagem para vir de Jacarepaguá até ao centro da cidade e, quando chegavam na porta do escritório e viam que só eu estava lá para atender, diziam logo entre eles: “Dr Fraga não está. Vamos embora porque quem está atendendo hoje é o nojento”. No dia da assinatura da escritura eles levaram a filha de dezesseis anos de idade junto e eu fiquei logo muito bonzinho e simpático. Isso foi no início do ano e quando este mesmo ano chegou ao fim, nós já tínhamos voltado da lua de mel.
Como queria fazer um concurso, resolvi entrar em um curso para não parar de estudar e tive professores como Heleno Fragoso em direito penal e Aguiar Dias em responsabilidade civil. Aguiar Dias era o papa neste assunto e seu livro de dois volumes era a Bíblia em toda a América Latina. Um dia, ele estava explicando um assunto e eu disse que não tinha entendido, porque me parecia que contrariava outra parte. Ele explicou novamente, mas usando os mesmos argumentos. Fui sincero e mostrei porque não achava a explicação satisfatória. Ele prometeu rever o assunto e trazer a explicação na próxima aula. Na próxima aula, ela foi logo dizendo que eu estava com a razão. Havia uma contradição entre esta parte e outra que regulava de modo diferente. Disse que isso iria constar da próxima edição de seu livro e fez questão de me dar uma declaração em que me elogiava e vaticinava para mim um futuro brilhante na carreira. Quando eu mostrei para o papai esse documento (que guardo até hoje), senti pela segunda vez o seu sentimento de orgulho.
Houve um ano em que papai resolveu realizar uma festa de fim de ano no escritório da Rua da Quitanda. Compareceram o Nicolino e outros. Havia bebida e todos já estavam um pouco altos. Quando homens se juntam, cada um quer contar mais vantagem que os outros. Começaram a elogiar as qualidades de diversos afrodisíacos, como amendoim, catuaba, barbatana de tubarão e houve até um que falou do pó retirado do chifre de rinocerontes. Quando recomendaram ao papai uma dessas substâncias, eu acho que ele não percebeu que eu estava escutando e declarou que: “Não, eu não vou usar nada disso porque a minha mulher já “fechou a fábrica”. Eu nunca fui infiel e não vai ser depois de velho que eu vou fazer isso”.
Por isso eu tenho certeza de que ele foi fiel durante toda a vida. Acho que isso é genético, transmitido de pai para filho. Escutaram essa, Nicinha e Mariana? Ricardo diz que, enquanto foi casado, também respeitou a tradição.
Depois que fui trabalhar com ele, enquanto cursava a faculdade, tivemos muito mais contato que antes. Eu era muito fechado, mas ele gostava de conversar e há algumas outras passagens sobre fatos que ele comentava comigo, mas acho que era conversa reservada e não me sinto autorizado a relatar.
Quando eu fiz o concurso e fui aprovado como juiz federal com apenas 26 anos, acho que foi o terceiro e maior orgulho que ele teve e a realização de um sonho. Ele sempre disse que queria que algum filho viesse a ser juiz ou embaixador. Minhas irmãs foram todas professoras e meu irmão seguiu odontologia. Por isso, só restava eu e fico muito feliz em saber que consegui realizar esse desejo dele.
Tomando posse, tive que ir morar longe e perdi o contato com papai, mas ele me disse que ficava furioso quando saía no Jornal Nacional alguma notícia sobre mim e usavam o nome “Alzir Carvalhaes”. Ele queria que me chamassem “Alzir Fraga” ou então pelo nome inteiro.
Por tudo isso eu sei que, embora tenha sido levado e travesso na infância, dei a meu pai vários momentos de felicidade e orgulho depois que cresci.

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